AS FUNDAÇÕES DA USP

  

MIGUEL REALE

  

                                                         Giambattista Vico, o genial filósofo napolitano do século dezoito, dizia que nas “ciências históricas”, designação que ele dava às “ciências sociais”, ´conoscere non si può senza vedere la guisa del nascimento”, ou, em tradução livre “não se pode conhecer sem se atentar para a forma como as coisas nascem”.

 

                                                         Esse ensinamento veio-me à memória quando soube pelos jornais que havia na Universidade de São Paulo um movimento no sentido de serem proibidas as fundações na USP, tendo sido nomeada uma comissão para estudar o assunto até outubro deste ano.

 

                                                         Como as primeiras fundações surgiram na USP em 1972, quando eu exercia a função de Reitor pela segunda vez, sinto-me obrigado a prestar meu depoimento sobre um assunto que considero da máxima relevância, não somente para as atividades universitárias como para os mais altos interesses da comunidade.

 

                                                         Dessa questão já tratei em artigo publicado neste jornal no dia onze de maio próximo passado, ao ser comemorado o trigésimo quinto aniversário do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Faculdade de Odontologia da USP, sediado no seu campus de Bauru. Demonstrei então que a gigantesca obra social por ele realizada, sob o carinhoso nome de “Centrinho”, não teria sido possível sem contar com a decisiva cooperação da “Fundação para o Estudo e Tratamento das Deformações Craniofaciais – FUNCRAF”, mediante a qual foi possível angariar os necessários recursos extra-orçamentários exigidos para ampliar e aperfeiçoar os trabalhos de pesquisa e prestar impressionante amparo a mais de 50.000 vítimas de surdes parcial ou total ou de deformidades craniofaciais, vítimas essas oriundas de cerca de 500 cidades do Brasil.

 

                                                         Por engano, no mencionado artigo, declarei que essa e outras fundações haviam resultado de Resolução por mim baixada, disciplinando a matéria, mas cuidadosa pesquisa, levada a cabo pela Consultoria Jurídica da Reitoria, veio demonstrar, com base em minhas reminiscências, que a questão fora resolvida em reunião do Conselho Universitário, por mim convocado para examinar a proposta da Escola Politécnica no sentido de criar uma Fundação para o desenvolvimento tecnológico.

 

                                                         Nessa oportunidade, como consta da ata dessa reunião, procurei demonstrar as grandes vantagens que adviriam para a USP com a instituição de fundações destinadas a potenciar as pesquisas e a prestação de serviços à comunidade.

 

                                                         O certo é que o Conselho Universitário, contra apenas um voto, aprovou a fundação proposta pela Escola Politécnica, ficando assim aberta a porta a iguais iniciativas, como a citada FUNCRAF.

 

                                                         Foi, pois, com grande júbilo que recebi uma carta do insigne professor Sérgio Almeida de Oliveira, titular de Cirurgia Torácica e Cardiovascular, cumprimentando-me por ter sido, em minha gestão, autorizada a criação de fundações, lembrando que “pouco tempo depois da FUNCRAF, a FUNDAÇÃO ZERBINI tornou possível a manutenção e expansão do Instituto do Coração (InCor), que hoje presta serviços nos campos da assistência, da docência e da investigação científica. Sem ela, continua o citado mestre, não teria sido possível o crescimento atingido no campo da assistência, docência e pesquisa”.

 

                                                         Assim sendo, os resultados propiciados pela FUNCRAF e pelo InCor bastam para comprovar que as fundações constituem magníficos instrumentos do progresso no campo das pesquisas e da prestação de serviços à coletividade, sendo bem provável que haja várias outras fundações merecedoras de encômios.

 

                                                         Alega-se, no entanto, que fundações existiriam na USP que não se mantiveram nos limites supra apontados, realizando cursos pagos, ou  exercendo atividades que significariam “uma forma de privatização da universidade”.

 

                                                         É claro que, afastado da USP desde minha aposentadoria compulsória em 1980, não tenho elementos para formular juízos sobre tais casos, mas o essencial é não se condenar uma instituição tão valiosa em virtude de possíveis falhas ou abusos perpetrados por alguns de seus dirigentes. Vejo, pois, com satisfação que foi dado longo prazo à Comissão encarregada de examinar cuidadosamente a questão.

 

                                                         Nem se pense que o recurso à idéia de fundação tenha ficado restrita à USP, cujo exemplo tem sido seguido por outras universidades, até mesmo de caráter privado.

 

                                                         A meu ver, esse é o caminho certo, pois como já adiantei no meu citado artigo, as universidades brasileiras, sobretudo as mantidas pelo Poder Público, não podem deixar de ampliar e aprofundar a missão de pesquisar e de ir ao encontro das necessidades mais prementes da comunidade.

 

                                                         O ensino reduzido a mera comunicação ou informação teórica, sem constante participação dos alunos no plano da experiência, está, há muito tempo superado, sendo ele inseparável da pesquisa.

 

                                                         Cabe, outrossim, ponderar que a função pesquisadora, que inova nos domínios das ciências ou das artes, abrindo novos horizontes ao conhecimento humano, nos países desenvolvidos é exercida, além de pelas universidades, por instituições mantidas por empresas privadas, interessadas não somente em resultados de ordem prática, vinculados a seus objetivos comerciais, mas também no plano da pesquisa pura, do qual emergem freqüentemente inesperadas aplicações de caráter econômico.

 

                                                         Nas nações em desenvolvimento, todavia, essa tarefa múltipla compete notadamente às universidades estatais, não podendo elas desprezar a contribuição inestimável das fundações.

 

                                                         No Brasil, então, com o ensino superior oficial confiado sobretudo à União, com a errônea gratuidade absolutamente dominante, as universidades vivem às voltas com carências orçamentárias, que poderiam ser cobertas por fundações, ainda que os serviços por elas custeados possam ter como destinatários, pessoas ou empresas interessadas neste ou naquele outro setor coincidente com seus objetivos particulares.

 

                                                         É mister que a universidade não tenha receio de enfrentar a prestação de serviços nem sempre representativos apenas de fins de ordem universal, desde que, em cauteloso balanceamento de valores, se verifique que haverá também benefício para o ensino, a pesquisa e a sociedade.

 

                                                          

15/06/02